sábado, 20 de dezembro de 2014

DESTA CAVE OBSCURA



Num universo paralelo, tenho amigos e família.
Nesse paralelo, tenho o carisma para inspirar multidões.
Nesse longínquo mundo, sou querida e amada
por quem me desconhece neste universo em que moro.

Lá até as flores perduram o fragor
Envolvendo quem passa no aroma do amor;
Mas aqui não há amigos nem família
que velem uma alma desgorvenada...

Passo apenas comigo os serões
Gigarros, café e bebida são da vida o meu soro.
Esqueço assim da vida o desaforo.
E imagino o tempo cheio de felizes verões.

Mas nada disto é a realidade deste mundo
dele prisioneira em cave escura.
Escrava de um desespero calado,
coração jamais sarado,
escondido num poço fundo
Desassossegada num tempo parado.

Escuridão apenas desvendada por gatos,
mas gata não sou, mesmo deles rodeada
continuo cega no meio dos cerrados matos
(onde milhares de olhos selvagens me espiam)...
Sigo pelo caminho por onde sou levada
vontades que na obscuridade me conduzem...
Desejos abandonados, velados olhos que riam.
Eis que piso um caminho já cheio de ferrugem.

Por isso sonho com o horizonte longínquo
aquele que atravessa terra e mar
deste mundo dos homens, ímpio,
quero fugir, e pelos céus voar! E não voltar!

Por isso, desta cave obscura.
imagino esse paralelo universo
onde desapareceria em encanto
de ser finalmente o que sou.
Neste mundo apenas deixaria este verso
desde sempre composto de pranto.
E planaria depois como uma ave que escapou!

Nesse mundo paralelo recomeçaria
por viver a pessoa que sou.
E desde logo nem me importaria
de viver num imaginário que ainda não soou.

Seria finalmente amada
e teria os poderes de uma fada.
e qualquer ferida sarada!

Mas com correntes me puxam para baixo
os demónios da realidade.
Esta cela é que é a verdade
O único mundo em que encaixo.

Fecho olhos, ouvidos e boca
cheirando apenas o odor acre
deste meu ser em decomposição louca.
selado está meu destino com marca de lacre.

Fechada na escuridão
remendo no meu casaco o último botão -
será dia de libertação
o dia que me transformará num não!

Não chorem a minha ausência
-se por acaso for notada...
Celebrem a minha vivência
em outro mundo, libertada!

Pouco de mim deixarei neste mundo
onde nada afinal descobri de profundo.
Fica o tesouro de quem amei
mas foram também apenas lindos sonhos que sonhei...

Morro só como sempre vivi.
No alto da noie, a lua sorri...


Armanda Andrade -20.12.2014

segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

CARTA A UM AMOR

Guarda o último pensamento,
quando o último fôlego expira,
para longe de mim, sem lamento.

Contempla em vez disso no céu
as estrelas a brilhar.
Se não as vês, afasta esse véu
que é a escuridão a chamar.

Nem penses sequer que lá estarei
nesse céu de estrelas, a pairar.
Ou que aquilo que já não farei
possa vir ao mundo a interessar.
Guarda o teu último suspiro para a dança
do universo que a tua alma alcança.
E abraça esse mundo novo que encanta
quem nele tem a ventura de entrar.

Mas só daqui a muito, muito tempo!
Virá a tua hora, mas bem longe do agora!
Na vida te desejo da luz solar o acento.
Saboreia-a doce, como o bago de amora.
Que a maldade e os tornados deste mundo
não desvaneçam no teu rosto o sorriso,
pois de bênçãos tudo tens que é preciso
nesse tesouro dum puro coração profundo.

Guarda o tempo que corre célere,
pois logo se esvaem minutos e horas!
Guarda apenas o que te não fere,
guarda só aquilo que amas e te adora.
À espreita sempre estará a Inveja
em folhas secas escondida,
criatura verde de alma ferida,
na sombra da floresta, onde se não veja.
Brincando a surpreender os incautos
dela alheios, actuando noutros autos.
Malévola criatura nascida na lama
que só se ira quando a luz da vida chama.

E a luz da vida chama
quando se abraça o que se ama.

Eu guardarei a minha última dança
em silêncio, calando a esperança.
Também contemplarei as estrelas
pois é delas o pó de que sou feita.
Para longe afastarei as fúteis querelas
e cuspirei na inveja vazia que espreita.
Quando eu soltar o último suspiro
farei como se fosse dormir, aliviada, satisfeita.
Recolher-me-ei num enfim calmo retiro
regressando a casa, com toda a certeza,
deitada no leito envolvente da natureza,
liberta enfim da sorte que me foi feita.

E então, serena, esperarei por ti
todos os anos que não vivi.


Armanda Andrade - 1 de Dezembro de 2014