domingo, 7 de setembro de 2014

Suicídio de um Alfa Romeo

          Fora um Verão trabalhoso, ali no meu refúgio alentejano, a criar jardim, plantar, podar, restaurar portas e janelas e a decorá-las com poemas... Trabalhava com gosto, de sol a sol, coisa absolutamente inaudita para mim. A pobre filha pré-adolescente esperava pelas 22h para comer, naquelas tardes de Verão de dias bem compridos...Creio que foi aí que desenvolveu mais dotes de desenrascanço...

          Corria o ano de 2001 e era lá que eu estava, a lidar com o empreiteiro e os seus contratados, eu própria cheia ora de tintas e vernizes, ora de terra e ancinhos, quando assisti, atónita, às primeiras imagens do 11 de Setembro; ainda perguntei "que filme é este", mas depois sentei-me e percebi que o mundo acabava de mudar, como toda a gente terá percebido. Depois dei o almoço e voltei para as lides.

          A minha filha recomeçaria o ano lectivo a 13 de Setembro, pelo que preparei tudo para partirmos no dia seguinte de regresso a Lisboa. Acontece que, na tarde do dia 12, me senti inexplicavelmente cansada e telefonei ao pai dela, que vinha precisamente do Algarve, pedindo-lhe que fizesse um desvio para a apanhar no Cercal do Alentejo, onde eu a levaria. Não me sentia em condições de viajar.

          Assim foi feito. O "transbordo" da querida infanta foi levado a cabo sem demoras e eu regressei ao meu monte aliviada e ansiosa por descanso. Comigo, no banco de trás, preso por uma trela ao encosto, viajava o meu belíssimo e fiel companheiro husky, o Picasso.

          Era um caminho que eu conhecia e tinha percorrido já centenas de vezes, uma estrada estreita e sinuosa, de curvas inesperadas. Refastelada no conforto do meu Alfa Romeo 156 - 1800, automóvel tão cúmplice de longas e rápidas viagens, um prazer indizível de conduzir, carro tão amado pela BT que, sempre que o via, o mandava parar e dava-me uma espécie de certificado ou menção honrosa pela regularidade com que eu já proporcionava receitas ao Estado, senti-me segura e, como estava cansada, resolvi experimentar andar devagar. Afinal, conhecia aquele caminho mesmo de olhos fechados!

          Eu disse olhos fechados? Dito e feito. Fechei os olhos. Por uma milésima de fracção de segundo, apenas! Já os faróis me mostravam uma linha de sobreiros, guinei mas havia areia na estrada, derrapei e dei de caras com a única ribanceira que deve existir em todo o Alentejo... O meu Alfa protestou por ir tão devagar e lançou-se selvagem e desabrido por ali abaixo. Lembro-me de pensar: "vou morrer, afinal é só isto, nem sequer custa muito..."

          Voltas e reviravoltas que me pareceram uma eternidade, o caos no meu mundo, a resignação calma de quem aceita e nem sofre. Depois, silêncio.

          O carro tinha-se imobilizado, pois a verdade é que chegara ao fundo. Confusamente, percebi que estava viva e mexi as mãos com cuidado, depois os braços, as pernas... mexia tudo e nem me doía nada. A minha prioridade foi sair dali e procurei a porta. Depois, procurei a janela. Depois, tentei perceber se havia alguma abertura para sair, era de noite e estava tudo escuro, nem sabia do porta luvas para tirar de lá a lanterna, o que começou a enervar-me. Também começou a inquietar-me o silêncio do meu Picasso... Chateei-me a sério e decidi sair nem que fosse à cabeçada. Por sorte, dei com a janela do tejadilho aberta (que estaria fechada, mais tarde soube que se partira...), aproveitei e arrastei-me dali para fora. Senti no braço uma lâmina mas não liguei. Cambaleando, afastei-me um pouco, tentando perceber o que tinha acontecido.

          Pois bem, não tinha capotado. O carro voara, amparado pelas árvores de sobreiro, e batera em cada uma delas em ricochete, meticulosamente, sem falhar nenhuma. Vi apenas uma chapa de metal retorcido e esmagado, com uma única excepção: o habitáculo do condutor, onde eu estava, intacto! Parecia uma chapa de metal com uma pequena bolha onde até o volante estava no sítio. Aturdida, fiquei desesperada ante a hipótese de o meu cão estar esmagado ali dentro, mas ouvi um arfar na escuridão e tacteei-o, arfava sufocando, a trela ainda presa ao banco enforcava-o, foi a chorar que o libertei, ele estava vivo mas cheio de sangue! Libertado, tentou fugir, mas as patas combalidas fizeram-no cair. Quando vi que não se afastava, procurei as minhas chaves da casa do monte, numa obsessão desesperada: eu só queria sair dali, ir para casa e dormir, fingir que estava num pesadelo mau. Demorei muito a encontrá-las na escuridão, num espaço todo invertido em que nada estava onde devia estar: o Alfa imobilizara-se sobre o lado esquerdo. Por onde o meu cão foi cuspido nunca hei-de perceber, mas a trela saía entalada da porta, foi uma sorte o carro não ter desabado sobre ele...

          Fiquei ali então, por uns momentos, já não chorava porque o meu cão não parecia muito mal, devia ter apenas uma ferida pois estava com sangue, e olhei para cima, tentando perceber como escalar aquilo tudo arrastando um animal de 32 quilos que não se movia... Foi aí que ouvi vozes "está tudo bem aí em baixo? A senhora está bem?" e depois a luz de uma lanterna e dois homens ao meu encontro, pai e filho. O rapaz arrastou o cão para cima, o outro amparou-me a mim; lá no alto, de imediato, surgida do nada, uma ambulância, as pessoas da casa em frente que a tinham chamado - no fim de semana passado tinha ali morrido um casal... Depois a GNR, teste do álcool, mas todos muito simpáticos, os senhores que me tinham ido buscar iam dar-me boleia até à casa, eu segurava as chaves como se fosse a coisa mais preciosa do mundo.

          Na ambulância descobriram-me um corte profundo no braço, mas só podiam coser-me no hospital. Perguntei-lhes se o cão também podia ir, disseram que não tinham autorização, perguntei-lhes se eles achavam que eu ia abandonar o bicho, ficaram a olhar para mim com ar de sonsos, disse-lhes que então prescindia do tratamento, curativos sei eu fazer, até tenho tudo em casa, lá insistiram em que me tratavam, avisando que, por me negar a ir ao hospital, ia ficaria com uma cicatriz feia, insisti se ao menos podiam ver o cão... De novo a sonsice a olhar para mim, agradeci a compressazita, o reboque já tinha aparecido, a GNR ficou com os meus dados e lá me meti no carro dos alentejanos de quem, desgraçadamente, ignoro o nome e nunca pude agradecer-lhes.

          Quando me deixaram ao portão, perguntaram se eu precisava de alguma coisa, agradeci, eu só queria mesmo era estar sozinha, tratar do Picasso e dormir, dormir, dormir...


          Em pânico apalpei o animal, para lhe descobrir a ferida de tanto sangue. Em espanto descobri que não havia uma única e que ele se mexia bem e nem gania, estava só combalido. Afinal, aquele sangue era o meu que lho passara quando o libertara da trela...


          Não queria telefonar a ninguém da família, ia provocar um escarcéu e pânico que não estava para aguentar. Telefonei a um amigo, uma vez que a mulher dele dormia a sono solto, pedindo-lhe expressamente para não avisar a minha família àquela hora, que eu o faria no dia seguinte.

          Depois, engoli uma série de comprimidos para dormir e assim fiquei 2 dias... Ao segundo dia acordei e comecei a tratar do jardim, arrancando em fúria tudo quanto era ervas daninhas. Acho que desde a alvorada até ao sol-pôr, só fiz isso. No terceiro dia acordei com o meu irmão ao meu lado: o meu amigo alarmara-se de nunca mais saber notícias e contactara-o. Ofereci um café ao meu irmão, ele retorquiu: "vi o teu carro ali em frente da oficina da aldeia, não faço ideia como é que estás viva!" (ele tinha razão, conforme depois constatei ao ver a carcaça esmagada - menos o habitáculo do condutor - do meu querido Alfa, que "tão cedo se partira / desta vida descontente"...)

          Pouco tempo depois, ao acabar o café, o olho clínico do meu irmão médico disse que eu tinha o braço esquisito. Ao apalpá-lo, afirmou que estaria partido. Até sorri, disse-lhe que mexia tudo, aquele inchaço era da violência com que arrancara as ervas daninhas...


          E foi assim: carro na sucata, um cortezito no braço cuja cicatriz é insignificante (o corte, apesar de profundo, era pequeno), o meu cão incólume, diagnóstico de veterinário, e eu de 3 meses com gesso só pela fractura ridícula do escafóide da mão direita.


          Desde aí que sou ambidestra...


          Ah, e ninguém me pagou o trabalho de corte das cascas dos sobreiros daquela ribanceira!


          Mais tarde, durante algum tempo, cheguei a ter pesadelos imaginando que o acidente se dava antes (!) de deixar a minha filha a salvo...



                              Armanda Andrade - Setembro de 2010

Sem comentários :

Enviar um comentário