quarta-feira, 10 de setembro de 2014

A Vidente Maria

          A ironia da coisa não surpreendeu Maria, habituada já há muito às peculiaridades inerentes aos homens. O facto de o dono de uma barbearia usar capachinho apenas lhe lembrava a patética futilidade da vaidade humana. Todavia, nem isso a consolava do seu aspecto tão desengraçado, revelado cruelmente pelo espelho todas as manhãs, numa bofetada morna. Mas tentava não pensar nisso conscientemente, apesar da dor nos pés, do cabelo teimosamente despenteado, do andar inseguro, das mãos inchadas... Todo o seu corpo lhe gritava, permanentemente, "és feia, és feia, és feia"!

          Maria andava de facto como uma perseguida, tropeçando amiúde, evitando o olhar de quem com ela se cruzava na rua. O seu olhar traía a sua ansiedade constante. Desde pequena, desde que se lembrava, nunca caminhava sozinha: as visões acompanhavam-na, onde quer que ela fosse.

          Tinha havido o tempo em que achara poder esconder-se delas: tinha sentido o amor, ou pelo menos uma palpitação de ardor, curiosidade e anseio, na altura em que o seu defunto a tinha namorado. Saboreara o primeiro beijo, aceitara o andar de mão dada como uma convenção própria do ritual de namoro. Fora a Paris na lua de mel, onde se maravilhara encadeada pelo relampejo da imensidade de um mundo por descobrir. Foi um relampejo breve: descobriu que, não interessava onde se encontrasse, o frio do medo e das visões a seguiam, colavam-se a ela, como a sombra sinistra de um mundo abismal, encarcerado na obscuridade do seu âmago.

          E eis que agora, ao arrastar-se pesadamente na calçada, suportava novamente o Medo. "A Vitorina achou que eu tive um afrontamento", pensou, e um sorriso amargo desenhou-lhe um ricto na boca. Tinha trinta e nove anos. Trinta e nove anos e a cabeça já quase branca, cansaço de idade e vida que ela escondia na penumbra da sua casa com aquelas tintas colorantes de supermercado, aplicadas com impaciência. Às vezes, num assalto de optimismo - nem se atrevia a chamar-lhe alegria! -, escolhia um castanho acobreado que achava excêntrico e ousado.

          Parou numa esquina, arfando, à espera do sinal verde para peões. A dor encostou-se-lhe. Maria estava conformada com esta companheira perene de jornada, fora sempre assim, Tentou não pensar na visão que tivera no Café Central, mal vira o seu vizinho Oliveira assomar à entrada, para de imediato se deter e recuar para a rua. Uma visão de uma aparição...

          Maria atravessou a rua mas estacou de súbito no outro lado do passeio. As mãos agarraram a carteira com força. Uma ambulância surgiu vinda da Avenida Central, fazendo ecoar ruidosamente a sirene que a alertou. Sobressaltou-se num arrepio gelado. Soube. Sabia que o sr. Oliveira jazia estendido num chão húmido de cimento, tão certo como ela levantar os olhos para o azul e ver as cores brilhantes de um céu de alvorada. "Ele está no Aurora"... E, como o surgir da imagem numa cãmara escura, formou-se na sua mente a figura de um homem de fato, impecavelmente direito, sobre uma mancha de sangue.

          Mas foi um nome diferente que escapou dos seus lábios, quase inaudível: "Fiona..."


          Armanda Andrade - Lisboa, Abril de 2009


          

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