domingo, 3 de agosto de 2014

Fiona Magellan - O Capítulo da Máscara




          Depois do assassinato de Carol, Fiona Magellan sentou-se à pequena secretária do seu quarto de hotel, com a adrenalina dos recentes acontecimentos a impulsioná-la para a luz do monitor no écran e a começar a escrever como um autómato, milhares de palavras a atropelarem-se no afã da escrita. Quando o transe amainou, releu o que tinha escrito e, na raiva da insatisfação, eliminou tudo.

          Enviou um email ao seu editor informando que estava activa mas que precisava de uma pausa para acabar o livro de maneira épica e inesperada para os leitores. O editor não ia gostar, mas ela tinha mais em que pensar do que no que o editor pudesse barafustar, como ele costumava fazer, tão teatral sempre!... Deitou-se sobre a cama depois de esvaziar o mini bar. Vista de cima, era como uma Ofélia mergulhada em lençóis de linho com mini garrafas em volta da sua cabeça, como numa coroa de flores. Pouco depois, parte dessa coroa acabaria atirada rudemente para o chão... mini garrafas vazias de mil cores.

          Fiona desceu à cave das mais profundas memórias. A morte de Carol devia ser homenageada usando essa coragem de levantar fantasmas há muito encarcerados.  Chamou-os para perto de si. O quarto encheu-de de companheiros de outras eras e de outras vivências, alguns meio apagados ainda, em estilo holográfico com edição de fotografia envelhecida, outros bem nítidos, como que impressos com tinta indelével.

          Deitada na cama, Fiona observou os seus primeiros movimentos. Um deles sussurrou que não estava surpreendido por ter sido invocado, pois é para isso que eles se escondem nas nossas caves e não desaparecem...
 

          Fiona transportou-se até há anos atrás, em jovem, antes de a sua agorafobia a esconder e proteger, e quando as visões ainda a não atormentavam. Costumava ter muitos amigos. Tinha uma vida social. Aos poucos, através de choques e sempre inesperadamente, descobria traições por parte de quem menos esperava, mesquinhices que a feriram, e também grandes maldades que a perturbaram seriamente e a fizeram começar a costruir a Máscara. Começou por esconder o dom de ver o que os outros não viam, e guardava os flashes das visões para si, teimando até em não acreditar em muitos até a carapaça Anti Dor estar terminada... Muitos a magoavam sem querer e sem disso terem consciência, até ela perceber que isso não existe: mais tarde, surgem incongruências nesses paladinos de virtudes e defensores das regras e conformismos tradicionais. Aprendeu que a injustiça e o egocentrismo dos outros não devem ser deixados a germinar. Na sua dor reprimida, entendia que essas pessoas não têm desculpa, a hipocrisia dos bem intencionados enche o Inferno, segundo consta.

          Talvez tenha sido por aí que, de magoada, aprendeu também a magoar... pois há sempre quem não perdoe quando a importância e a atenção que requerem deixa de ser dispensada.

          A carapaça de Fiona ganhou mais uma camada. Descobriu, tarde de mais, que amigos haviam conspirado contra ela, amigos que ela respeitava. Enxugado o choro no coração, apenas a levaram a sentir-se mais determinada. Infelizmente, mais sozinha também ficou, mas é o preço a pagar para quem quer rodear-se de almas sinceras e desinteressadas, livre de manipuladores e sugadores. Mas são tão raras, essas almas, como pérolas num mar de ostras vazias de poeira...! E Fiona, demasiado sensível e trapalhona construtora de carapaças, acabou agorafóbica.

          Em tudo isto ela pensava enquanto assumia a posição do suicídio de Ofélia na cama, com lágrimas que todavia não chegavam para formar um rio... Carol morrera assassinada e não lhe interessavam os motivos de quem o perpetrara. Ia sobrepor na personagem de Carol as únicas razões que conhecia bem, as suas, um artifício literário que tantos escritores usam quando se querem confessar usando diversas personagens... Carol morrera com um sorriso. Fiona, na sua eterna e escondida mágoa, tentou sorrir. Desenhou-se na face apenas um esgar...

         Eis então que Fiona engole o conteúdo da última garrafinha da coroa, como se de um espinho na memória se livrasse, senta-se frente ao portátil e começa a inventar um passado sórdido para a sua personagem assassinada. Para que, quem quer que a tivesse odiado ao ponto de a matar, não o fizesse, a ela, um dia...

          Foi assim que Carol, capítulo a capítulo, se foi transformando em Fiona. E Fiona percebeu que, apesar de tudo, por mais que aviltasse o carácter da sua personagem, nunca escaparia do medo. Daquele medo de ter de fingir ser, para sempre, alguém que nem conhecia, e cujo fim tinha sido trágico...
          Os primeiros parágrafos que escreveu foram os seguintes:



          "Era uma vez uma bela rapariga que vivia numa floresta cheia de sonhos. Teve um amigo, que lhe deu um ramo de flores, mas que mordeu a mão que o recebeu. Era um jacaré, foi assim que o viu, mal se levantou a névoa da manhã. O ramo de flores soltou-se e desapareceu na corrente. Carol, a bela menina, a cuja passagem as flores desabrochavam, ganhou um brilho nos olhos desde que esse amigo explorou a sua vulnerabilidade e a traiu, escondendo os olhos na sombra, sobre a lama. Era um brilho de olhos em lágrimas.
          Ao mesmo tempo, brilhos de luz esverdeados teimavam em espreitar pela densa folhagem escura das noites...
          Mas isso foi antes antes de ela aprender a sorrir para que esse brilho dos olhos parecesse de felicidade... "

Armanda Andrade - Outubro 2013


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