quinta-feira, 10 de julho de 2014

A lucidez - Parte I


capa de Armanda Andrade


Não é a juba ou a cabeça majestática do leão que torturam a minha figura humilde; não é o seu olhar sobranceiro que rouba o orgulho dos meus olhos nem a altivez do seu porte que me torna cabisbaixo. Não é o peso do elefante que abate a minha pequenez nem as patas enchendo de carimbos a terra que eu piso que me impedem de caminhar.


Não é o roble secular que se eleva na montanha que me faz sentir o efémero por viver mais do que eu. Não são as neves do Himalaia que gelam o meu desejo de eternidade e me tornam infeliz... Se ao menos Deus me tivesse dado este sonho de eternidade, mas não me exigisse a realidade da prova!...

O que me tortura é a minha lucidez. Ela é o meu castigo, a minha tragédia. Ela abafa todos os meus sonhos, é a minha ilusão de viver. É a luz intermitente que me faz avançar mas que para sempre me deterá no sinal vermelho.

É a lucidez que me põe abaixo do leão, porque, se para mim ele é a majestade, para si é apenas leão. E o elefante não sabe se é mais pesado ou mais leve que a espuma do mar, sou eu que os ponho no prato da balança. Nem a árvore secular tem consciência do nascer e do morrer, ela não sabe contar a idade. É a lucidez que gela o meu pensamento e me traz a imagem da morte. Sim, invejo o elefante, o leão, a árvore, a Sibéria gelada, invejo tudo aquilo que não morre porque não conhece a morte. Invejo todo aquele que não precisa de se drogar para morrer inconsciente!

Sou apenas uma linha de pontos efémeros - mais curta ou mais comprida, mas sempre a terminar num precipício fatal.

(João Marcos, lúcido até ao fim - in "O Ser e o Nada", SOL XXI, 1997)

Nota: A capa foi-me roubada, em autoria e fisicamente, pelo sr. Pedro Massano, responsável pela fotocomposição e execução gráfica.

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