terça-feira, 1 de julho de 2014

Esboço de Guião para novela pimba


O Pedido de Casamento


(A cena passa-se num restaurante acolhedor e requintado, aberto fora de horas; a luz é suave e os empregados movem-se silenciosa e discretamente, porém sempre solícitos. Apenas outro casal marca presença numa mesa afastada, ocupado numa conversa rotineira, amistosa mas banal. Uma música suave ecoa coleante pelo ambiente, um adocicado jazz convidando ao conforto e ao romance tranquilo. Perto, o crepitar lânguido do fogareiro do restaurante embala toda a sala no calor e no recolhimento que faz esquecer a chuva torrencial do exterior, expulsando a fúria da natureza e reduzindo-a a um som difuso e incoerente, chuva e relâmpagos de filme de terror tornados anódinos para lá das fronteiras daquele abrigo, a revolta fustigando inconsequente as vidraças do edifício.)

O casal protagonista acaba de se instalar numa mesa longe das janelas, num espaço recatado. Sempre cavalheiro, o homem espera a mulher sentar-se e rodeia-a de atenções. Escolhem a ementa, o vinho, começa a conversa, fazem um brinde, festejam o aniversário de quando se conheceram.

A conversa recai realmente sobre isso e ambos aproveitam para admitir que, havendo embora os problemas ocasionais, foram todavia feitos um para o outro. Ele é o Príncipe dela e ela é a sua Rainha. Olham-se nos olhos. A música (ou o amor?) inebria-os, ou será apenas o vinho?


São servidas as entradas, ocasião para mais um brinde, sorrisos e risos, memórias partilhadas... alguns assuntos mal resolvidos, tentativa de conversar e resolver o que ficou por dizer. Porque, disse-lhe ele uma vez, “nada deve ficar por dizer”. Foram feitos planos, foram feitas juras, foram feitas promessas... Sem o notar, ela roda distraidamente o seu anel de noivado, um gesto que se tornou um tique desde que ele lho ofereceu, no calor da paixão do primeiro ano.

Num relance ele nota esse gesto. Sabe que é um gesto de dúvida e de desconforto. Sim, já foi há algum tempo que ele lho ofereceu. Já foi há algum tempo que ela disse que sim. Depois a vida intrometeu-se e outras prioridades surgiram... Depois ela disse que não, mas nessa altura também ele já não tocava no assunto.

A sua Rainha está triste, pensa o Príncipe, triste e desiludida. Duvida da sua palavra, das suas intenções, pior, da sua sinceridade. É algo que ele não pode sustentar, ensinaram-lhe a honra e a importância da palavra dada. Num ímpeto agarra as mãos da sua Rainha e, de olhos húmidos, declara-lhe a sua adoração eterna e incorrupta, esqueçam-se mágoas e pormenores mais desagradáveis! “Queres casar comigo? Casamos já amanhã, se quiseres, juro-te, vamos casar já amanhã!”

A Rainha descobre-se presa nas mãos dele, surpresa pelo ardor que já quase esquecera, balbucia “mas como?”, ele responde, sempre de olhos dentro dela, “vamos ao registo, só precisamos de testemunhas!”... Ela hesita, faz um esboço em libertar as mãos, ele agarra-as com firmeza: “Sim ou Não?”

Ela abre a boca, viu de repente de novo o seu Príncipe, vai dizer que Sim. O momento pára, a música suspende-se, a penumbra invade tudo o que não seja o seu campo de visão, aqueles olhos húmidos e vermelhos que a possuem, afinal está tudo bem, ele ama-a, é apenas homem e os homens têm tendência para promessas e para esquecê-las...Vai dizer que sim e por isso entreabre os lábios, brilham-lhe de certeza os olhos!

E de repente, ela sente as mãos soltas, ouve-se de novo a música de fundo, acabou a gravação de jazz e paira agora algo de indefinível, o ruído de fundo é o de um restaurante entretanto mais cheio e até a chuva lá fora calou de repente o seu ímpeto. Foi num segundo de desconcerto que ela reparou que ele a largou, está a olhar para trás para chamar o empregado, “queres mais vinho?”, o sim dela acaba por se destinar ao vinho, sim, quer o vinho, quer beber mais, quer a ilusão do inebriamento que se diluiu no momento interrompido e para sempre perdido,

A conversa continuou, fluida e previsível, coisas que se disseram, coisas que não se disseram (e que são sempre o mais importante numa conversa, aquilo que se cala...), mais tarde ela alegou vagamente que um casamento devia ser uma festa, uma celebração, ele olhou-a de repente como um estranho, o pragmático, “para quê gastar dinheiro em coisas supérfluas, o importante é estarmos juntos”, a mulher retorquiu que então “se isso já acontece, para quê então casar...?”


O jantar acabou, o regresso a casa foi mais silencioso, ela rodava o anel no dedo, chegou a casa e arrumou-o, jurou em silêncio nunca mais o usar, e nessa noite, quando se deitaram, a Rainha tinha a seu lado não o Príncipe, mas o Sapo. Mas também não fazia mal, ela Rainha também já não era...



Armanda Andrade - 11.03.2010

Sem comentários :

Enviar um comentário