sábado, 12 de julho de 2014

A lucidez - Parte II



Por mais intenso que seja o prazer

ao passar em cada ponto da caminhada
eu nunca deixo de ter
a visão lúcida do fim da estrada.
É a lucidez que me leva a desejar
a ultrapassagem vivencial
de cada um destes pontos, 
e também ela que me faz recear
a chegada ao ponto final.
É que a luz brilhante
que ilumina a estrada de ponta a ponta
se apaga num instante
e no términus da estrada
só a escuridão é que conta, 
para além não se vê mais nada
a não ser um esqueleto
apodrecendo no fundo de uma cova.
Ah! se eu não visse este esqueleto
nem esta podridão,
como a semente que se renova
não sabe que um bico de ave
pode ser o seu caixão
como o rio que não sabe
que hora a hora morre no mar
como o verme, como a planta
como o roble secular
que no bosque se agiganta
não sabem eles que um dia
também irão acabar...
mas a lucidez denuncia 
a este animal que pensa
que tudo o que possa pensar
fora da sua ilusão
para além do esqueleto
não passa de adivinhação!
Porque animal que passeia
só vê os passos que dá
porque a roseira nem vê
as lindas rosas que dá
não sabe a lua se é cheia
se é quarto ou se é lua nova
só este animal se vê
apodrecendo de véspera
no fundo da sua cova
da cova que traz com ele
ao nascer...

Tudo o que nasce no mundo
traz consigo a sua morte
sem saber...
Sem saber é melhor sorte
do que ser lúcido, e ver
que não saímos do mundo
mesmo depois de morrer
e que o desejo exclusivo
de vivermos noutra vida
- tortura de morrer vivo -
é sonho, letra a pagar
é tributo que pagamos
ao castigo de sonhar
à tortura de morrer
- tortura de morrer vivo -
ao suplício de viver
à tragédia de saber.


João Marcos, in "O Ser e o Nada",  SOL XXI Poesia,  1996

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